A FUNÇÃO SOCIAL DA REMUNERAÇÃO E A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DAS REDUÇÕES SALARIAIS EM PORTUGAL

EXPOSITOR

DR. JOÃO LEAL AMADO
PORTUGAL

 

 

 

SUMÁRIO

 

1. O direito à retribuição/salário como direito fundamental dos
trabalhadores

• O direito à retribuição do trabalho como direito fundamental,
consagrado no art. 59.º da Constituição da República Portuguesa:
direito económico, de natureza análoga à dos direitos, liberdades e
garantias.
• Art. 59.º da CRP: incumbe ao Estado assegurar a retribuição a que
os trabalhadores têm direito, bem como estabelecer e actualizar o
salário mínimo nacional, devendo os salários gozar de garantias
especiais, instituídas por lei.
• A função social/alimentar da retribuição: a retribuição como principal,
ou mesmo único, meio de sustento do trabalhador e da respectiva
família.

2. A redução do salário pelo Estado-legislador: o Orçamento de
Estado para 2011 e para 2012

• OE 2011: redução remuneratória percentual progressiva para os
trabalhadores da Administração Pública, entre 3,5% e 10%, para
retribuições mensais superiores a €1.500.
• OE 2012: manutenção das anteriores reduções remuneratórias,
acrescida de suspensão/supressão dos subsídios de férias e de
Natal, a partir de €600 mensais.

3. Questões suscitadas

• ¿Trata-se de uma redução salarial definitiva ou temporária?

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• ¿Haverá violação de um «direito fundamental à não redução do
salário»?
• ¿Haverá violação do princípio do Estado de Direito, no seu
subprincípio da protecção da confiança?
• ¿Haverá violação do princípio da igualdade, por discriminar
negativamente os trabalhadores do sector público?

4. As respostas do Tribunal Constitucional quanto ao OE 2011:
Acórdão n.º 396/2011

• ¿Redução definitiva ou temporária? Trata-se de medidas de
carácter orçamental, de vigência anual, que, é certo, poderão ser
reiteradas nos anos subsequentes (acabando por ter uma duração
plurianual, enquanto perdurar o contexto de crise), mas que,
enquanto tais, não perdem o seu carácter transitório ou temporário.

• ¿Irredutibilidade do salário? Essa é uma regra de valor
infraconstitucional e, aliás, não absoluta. Além de que, segundo o
TC, não deve confundir-se o «direito à retribuição» com o «direito a
um concreto montante da retribuição». Por isso, segundo o
Acórdão, não pode entender-se «que uma redução do quantum
remuneratório traduza uma afectação ou restrição desse direito» →
uma tese, a nosso ver, muito duvidosa.

• ¿Violação do princípio da protecção da confiança? Para o TC,
existe aqui uma confiança do trabalhador na intangibilidade do seu
salário que é digna de tutela, pelo que haverá que proceder a um
balanceamento ou a uma ponderação de interesses, sendo que, in
casu, o interesse público (reequilíbrio orçamental, saneamento das
contas públicas) deverá ser considerado prevalecente, legitimando
uma afectação da confiança que não seja desproporcionada, isto é,
que se situe dentro dos limites da razoabilidade e da justa medida.

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• ¿Violação do princípio da igualdade perante os encargos públicos?
Segundo o TC, estas medidas orçamentais de redução
remuneratória situam-se a montante dessa questão, através delas
o legislador procuraria definir/limitar os encargos públicos (reduzir a
despesa pública), não propriamente repartir esses encargos…

• Esta opção legislativa situar-se-ia, pois, no âmbito da livre
conformação política do legislador, pelo que o TC não declarou a
inconstitucionalidade das normas do OE 2011.

5. As respostas do Tribunal Constitucional quanto ao OE 2012:
Acórdão n.º 353/2012

• Um acórdão que, perante o agravamento da redução salarial e
tendo em conta o alargamento temporal dessa medida (até ao final
da vigência do Período de Assistência Económica e Financeira,
pelo menos 3 anos), entendeu que o legislador havia ultrapassado
o limite razoável.

• O TC entendeu que a lei do OE para 2012 violava o princípio da
igualdade, na dimensão de igualdade na repartição dos encargos
públicos: a igualdade como problema relacional, havia aqui um
tratamento desproporcionadamente desigual para quem aufere
remunerações por verbas públicas em relação a quem aufere outro
tipo de rendimentos (comerciais, industriais, de capitais, etc.) ou em
relação a quem aufere rendimentos do trabalho provenientes de
entidades privadas. Essas normas da lei do OE 2012 foram, assim,
declaradas inconstitucionais, ainda que sem carácter retroactivo.

6. Função social da retribuição: ¿irredutibilidade salarial?

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• Ainda que não exista uma regra constitucional expressa de
irredutibilidade salarial, a verdade é que a redução da retribuição,
enquanto medida restritiva do correspondente direito fundamental,
apenas poderá ser admitida em moldes condicionados:
condicionados, desde logo, ao respeito pelos princípios
constitucionais da proporcionalidade e da igualdade.

• Primeiro, haverá que demonstrar que, para conseguir o reequilíbrio
orçamental, é necessário atacar rendimentos do trabalho
dependente → estes, até por força do seu estatuto constitucional
privilegiado, só como ultima ratio deverão ser sacrificados.

• Em caso afirmativo, então haverá que atacar tais rendimentos,
lesando a legítima confiança dos trabalhadores na manutenção do
seu nível/estatuto retributivo, mas só na medida estritamente
indispensável, isto é, na menor medida possível (adoptando a
medida «mais benigna» ou «menos maligna»).

• Ora, tudo isto implica, como condição sine qua non de legitimidade
constitucional das medidas de redução salarial, uma repartição
equitativa dos sacrifícios.

7. Conclusão

• O chamado Memorando da Troika não pode legitimar aquilo que a
Constituição da República Portuguesa proíbe → uma redução
remuneratória não equitativa, que sacrifique o salário e a função
alimentar que este desempenha.
• As reduções remuneratórias só serão constitucionalmente legítimas
se surgirem como ultima ratio (princípio da indispensabilidade das
reduções) e se forem equitativas (princípio da igualdade na
repartição dos encargos).